quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Vamos mudar a batida?

O Sr. Ano 2010 está gasto e cansado. Vamos mudar a batida para vigor no novo ano?



Deixemos as velhas dores e os velhos medos arquivados no último minuto de 2010 e deixemos que o sonho realize a partir do primeiro minuto de 2011.

Feliz ano novo

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Não compreendo

NATAL- MIGUEL TORGA

Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...

sábado, 27 de novembro de 2010

Egoismo

Quando olhamos o espelho e vemos apenas a nós mesmos, ao olhar para os outros vemos o que vemos ao espelho; -o inimigo.



Quando olhamos para o espelho e vemos mais do que nós, tomamos para nós o que é próprio de nós, o que é próprio dos outros e o que é próprio do mundo; - compreendemos - então já não necessitamos de ser egoístas.

Gostei da aula :))))

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

murros em ponta de faca

O vermelho ocaso inicia-se
Está húmido
Caminho lado a lado com a indiferença
Grito dentro que se alastra pelos lábios cerrados
Percurso sinuoso
Deixando na boca a amargura metálica da solidão
Está frio
O desconforto é ainda um sinal
Estou viva!
E o final desta tarde
Pode ainda ser meu
Senhora do fim de uma tarde por escrever
Estou viva!
Não é tarde ainda

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ítaca não é uma ilha

Estive a ler a Odisseia e que narrativa!!!
Tinha ensaiado, aos 16 anos, a leitura na tradução dos padres Dias Palmeira e Alves Correia sem o ter conseguido o intento. Comprei no entanto a tradução de Frederico Lourenço, uma edição do Cotovia; - a quem muito agradeço o trabalho - e li Homero de um sopro. Digo de um sopro porque tentei lê-lo como se o Aedo, ainda ele, me soprasse as palavras ao ouvido.

Ítaca não é uma ilha! É prémio à consciência seja qual for o caminho. Ulisses faz o caminho da dor, Telémaco o do amor. E talvez seja este o “interesse imorredouro” da história a que se refere na introdução Frederico Lourenço.

Ítaca não é uma ilha! É o reconhecimento à coragem (Ulisses, Homem de mil ardis) e à esperança (doce Telémaco).


“ A ele deu resposta a sensata Penélope:
“Meu filho, tendo o coração no peito cheio de espanto;
Não consigo proferir palavra alguma, nem perguntar nada,
nem sequer olhar para ele, olhos nos olhos. Mas se ele é
na verdade Ulisses chegado a sua casa, sem dúvida ele e eu
nos reconheceremos de modo mais seguro, pois temos
sinais, que só nós sabemos, escondidos dos outros.”

“Não te enfureças contra mim, Ulisses: sempre foste em tudo
o mais compreensivo dos homens. Os deuses deram-nos a dor,
eles que por inveja não permitiram que ficássemos juntos
a desfrutar a juventude, para depois chegarmos ao limiar da velhice.
Mas agora não te encolorizes nem enfureças contra mim
Porque, ao princípio, quando te vi, não te abracei logo.
É que o coração no meu peito sentia sempre um calafrio quando
Pensava que aqui poderia vir algum homem que me enganasse
Com palavras. Muitos só pensam no mau proveito.”

Pudéssemos nós saber os sinais, como os sabia a fiel Penélope, para destrinçar o herói dos que nos devoram a casa.

Ítaca não é uma ilha! É o continente humano da cultura transmitida e dos valores apreendidos.

Obrigada mais uma vez ao Sr. Professor Frederico Lourenço pelo seu trabalho que me deixou, nas palavras de Penélope, a esperança:

“se na verdade os deuses te vão conceder uma velhice feliz,
Há ainda esperança de que possas afastar os outros males”

Assim tenhamos nós a humildade de Telémaco para viajar e aprender os sinais com os que os sabem.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

sábado, 8 de maio de 2010

o micro e o macro

“Não existia nada: nem o claro céu,
Nem ao alto a imensa abóbada celeste.
O que tudo encerrava, tudo abrigava,
E tudo encobria, que era? Era das águas
O abismo insondável? Não existia a morte,
Mas nada havia imortal. E a separação
Também não existia entre a noite e o dia.
Só o Uno respirava em si mesmo e sem ar:
Não existia nada, senão Ele. E ali
Reinavam as trevas, tudo se escondia
Na escuridão profunda: oceano sem luz.
O germe, que dormitava em seu casulo,
Desperta ao influxo do ardente calor
E faz então brotar a Natureza Una”
in: RigVeda


Como inteligir o existir e o inexistir em simultâneo? Como inteligir um sentido respirando em si mesmo, sem luz, latente em seu casulo? Como inteligir um casulo de treva germinal? Não é da Luz Divina e Criadora que brota a natureza manifestada mas de uma profunda treva em que se esconde. Um ser e um sentido absoluto são ininteligíveis no mundo relativo da razão solar. Convido-te à Luz Lunar. Convido-te ao maravilhoso, à imaginação, ao sonho, para buscar o sentido do imanifesto na natureza manifesta. É isso que aqui fazemos, não é?

Tudo para se manifestar necessita de um veículo. É necessário que o imanifesto impregne a plasticidade para que se exprima. Como expressar o Espírito sem Matéria? É necessária uma forma, não é? Não há no Universo o puro espírito sem matéria. Estes dois pólos: - O espiritual ou o imaterial ou a consciência e - a substância ou o material ou a receptiva plasticidade que lhe serve de veículo existem no seio do absoluto; - existe no seio do absoluto a consciência e o véu que a encobre, esse mesmo véu que lhe serve de veículo para manifestação individual do absoluto escondido na escuridão profunda da treva, respirando em si mesmo e sem ar.



Deixemos que o tempo se dobre sobre si mesmo e permitamo-nos voltar ao mais puro estado do Caos. Nem morte nem imortalidade, nem noite nem dia, apenas treva impregnando o quadrado da natureza, latente em seu casulo aguardando o despertar.

É agora que vos peço para que deixem manifestar, no mais fundo da vossa treva, a ténue Luz Lunar, deixem que desperte, ao influxo do seu calor, a Natureza Una em vós. Deixem-se volatilizar como se fossem apenas odores aquecidos vagando o espaço, deixem que se erga do Fogo do Meio-Dia ao Setentrião o véu da materialidade. O abismo profundo das águas separa-se deixando que a montanha se manifeste, Feminino e Masculino, impregnando dos seus odores diferenciados, o Uno Rectângulo de Ouro.

Dêem ao vosso olhar altura e deixem que a abóbada celeste respire resplandecente com seus luzeiros de fazer o Dia e de fazer a Noite, deixem que a mais profunda Treva em vós vá cedendo, lentamente, lugar à manifestação da Luz, conheçam de igual modo o velho e novo, o amor e o ódio, a vingança e o perdão, o individualismo e a fraternidade, a morte e a vida, a matéria e a espiritualidade. Deixem que essa dualidade, bem conhecida, opere na vossa Natureza Terra, diferenciada da impregnação do quadrado.

Dai agora ao vosso olhar comprimento, e contemplai a Beleza do Universo, o Macrocosmos manifestado Luz da vossa mais profunda Treva, dando igual lugar: - ao novo e ao velho; - ao quente e ao frio; - ao compreendido e ao incompreendido; - ao próximo e ao longínquo; - à Luz e à Ausência em que se mostre.

A Ténue Luz Lunar desdobra-nos o velho Mito para se fazer novo em outro lugar do tempo. Qual o tempo? Qual o Lugar? Não sei… O que eu sei é que no centro; - o germe, desperta do seu casulo de Treva pelo influxo ardente da razão e do sonho, para brotar enfim a natureza única em cada Um; - nem Centro nem Esfera, nem Sol nem Lua, nem Feminino nem Masculino, nem Luz nem Obscuridade, nem Bem nem Mal, apenas o Véu da Consciência que um Tempo paciente nos há-de revelar.

Escada de Jacob

O trânsito estava caótico: - A Serra! Claro! - Ainda estava a tempo de sair da A4 e fazer o caminho da Serra de Valongo – Amélia virou à direita e meteu-se pela Serra.
Logo depois da curva parou. Sorriu: - igual. Não havia alternativa senão esperar, gastar um pouco mais de gasóleo; - soltou uma gargalhada: - Já que a crise do petróleo tinha estalado melhor dar uma ajudinha…
Amélia encostou o carro à berma. Podia aproveitar o fim de tarde num passeio pelas matas.
O contacto com a natureza deixava-a sempre serena. Ver o sol pelas folhas, ouvir o cantar da natureza… Deixar a Natureza fluir pelas narinas, pelos ouvidos, sentir-lhe o gosto era estar com a Ordem por trás do Caos.
À medida que se embrenhava na mata o ouro solar prateava-se e invadia-a a sensualidade da ausência do ruído citadino… Reflexos de luz chamaram a sua atenção… vinham do chão,
Amélia baixou-se para ver o que reflectia o sol. Viu, por entre a vegetação, um círculo de metal que não teria mais de 40 cm de diâmetro. Bateu… Soava a oco… Esgravatou com as unhas a terra e colocou a descoberto uma das bordas do circulo… hesitou… melhor seria dar meia volta e voltar ao carro: - Raios e coriscos! Havia alturas em que odiava ser mulher… puxou com força a borda do círculo e descobriu o que parecia ser uma entrada para uma gruta. Saltou! No salto largou a vegetação que a mão afastava e a entrada ficou tapada.
Voltou ao carro e deitou a mão à porta na firme determinação de dar a volta à chave e voltar para o calor do lar. Entrou resoluta no carro, meteu a mão no porta-luvas e tirou a lanterna. Dirigiu-se à entrada circular.
A entrada era estreita… ia ser duro. Acendeu a lanterna, deitou-se no chão e esticou os braços para dentro do buraco. Era terra, só terra. Começou a rastejar até estar toda dentro. O buraco estreitava-se e Amélia começou a sentir a boca a saber a metal. A lanterna incomodava, não a deixava rastejar como devia. Colocou a lanterna na boca e fez mais força com os braços e com os pés. O buraco era estreito… à medida que adentrava vinha-lhe às narinas o cheiro quente da terra. Estranho… deveria estar em pânico… continuou a rastejar e sentiu que a entrada se alargava na zona das mãos: -Mais um pouco Amélia, mais um pouco.
Deixara de sentir paredes nas mãos, a lanterna mostrava que o buraco estava a acabar. Doíam-lhe as ancas de roçar a terra… Persiste Amélia! Persiste!
Chegou finalmente à gruta. Era baixa mas magnifica... O vermelho do sulfureto de mercúrio fazia-lhe lembrar o Útero. Amélia deitou-se sob a terra para descansar da ansiedade da entrada: -aquela cor era absolutamente única, brilhante… Sal de Mercúrio e Enxofre em estado puro… doseados no certo… bem conservados…
A lanterna começou a falhar. O coração de Amélia deu um salto. Esta não era, de todo, a melhor altura para a tecnologia lhe falhar. Bater no equipamento costumava resultar nos filmes; -bateu… nada! O absoluto breu envolveu-a… pelo meio de um esgar Amélia pensou que aquele instante, definitivamente, não era o de um filme do McGiver.
O coração de Amélia batia-lhe na garganta, na boca a secura gastara toda a saliva e no estômago voavam mil borboletas. Amélia concentrou-se na Terra. Tacteou-a como se tacteia um amante, tentando sentir-lhe as formas, as irregularidades… tactear o calor da terra acalmava-a. Tinha-se deslumbrado com o vermelho e esquecera-se de registar, no seu decúbito, a posição relativa da entrada… Amélia assumiu os restantes 4 sentidos e o coração voltou ao peito.
Deixara a entrada aberta, se houvesse uma saída por certo haveria ar corrente. Amélia levantou o braço… sim! Podia sentir pelo meio do braço, do lado esquerdo, ar. Teria que se movimentar para a esquerda. Deu sobre si uma volta, levantou a cabeça e pode ouvir o assobiar do ar, seguiu o som, abeirou-se do calor da terra, como se rastejasse o ventre.
A mão tocou um objecto. Amélia sentou-se e tacteou-o. Parecia um bordão. A ladear o bordão havia algo que parecia serpentear, a encimar o bordão havia um fino globo. Amélia sentiu nos dedos tacteantes; -pó. Levou a mão ao nariz… enxofre! - O isqueiro Amélia! Nunca sabia onde colocava o isqueiro, era até motivo de graça dos colegas essa sua idiossincrasia com o isqueiro: - Como gostava de ter um isqueiro no bolso: - Amélia! Não há melhor sitio para ter um isqueiro que no bolso mulher! - Tremiam-lhe as mãos - porque nunca sabes onde pões o isqueiro!... Bom… dióxido de enxofre também não era boa ideia, as narinas agradecer-lhe-iam não saber onde tinha o isqueiro.
Voltou a concentrar-se no som, que se tornara mais presente, agarrou o bordão e usou-o para sondar a marcha. Avançou.
Chegava-lhe som de água que caía. Formou-se na sua mente a imagem de parede de água caindo em lago. Amélia viu-se, pelo lado fecundo, banhada… Viviana; - A Dama de Lago… uma virgo amante de Merlin, encerrada em si mesma… Um símbolo brilhando sob luz de prata, possibilidade perene de renovação, de juventude e de liberdade sexual. Amélia sentia-se imergir em segurança, soçobrando segredos de vida e morte, alimentando ciclos, forjando espadas tomadoras de Graal…
Ah o frescor da água que sobre si caía lavava-a de toda a angustia, envolvia-a a segurança de ser liquido, sem forma, tolerante a qualquer espaço… Livre!
Amélia iniciou a atravessar as águas, segurou o bordão pelas serpentes, pareciam mexer-se… pareciam tornar-se vivas: -Sempre odiara cobras, Não! cobras não! Alargou o espaço do indicador ao médio, come se fosse largar o bordão…

Irrompeu do globo uma chama azul… O forte cheiro a queima de enxofre rompeu o espaço… Amélia podia ver, por trás da espessa parede de água, fogo… Hesitou! Prosseguir? Voltar? Por certo não se aguentaria na gruta cinábrio com o enxofre em queima.
Olhou o Caduceu… Era a vida fatídica ?Poderia ela dirigir livremente a sua vida?
Poderia ela reunir num mesmo plano res cogitas e res extensa . Amélia olhava a mente como o potencial estático do activo, criativo e mutável espírito, olhava o corpo como o potencial dinâmico da mente.: -Talvez Descartes tivesse razão e não fosse possível a dois princípios, a duas substâncias ou duas realidades serem redutíveis entre si, conciliáveis, capazes de síntese final ou de recíproca subordinação mas Amélia recusava-se a colocar a hipótese de não haver factor comum no limite das diferenças Dx e Dy… Teria de haver factor comum à derivada e ao integral… O fatalismo mais não era do que falta de acção…
Amélia sorriu… A sua língua não possuía a flexão gramatical de número dual . Em português ou era um ou eram muitos. Abriu-se mais o sorriso… Só uma palavra poderia carregar essa ideia, talvez a excepção que confirmava a regra; - ambos…
Duas serpentes acasaladas sobre o falo erecto de Hermes, símbolo de fecundidade…
Eixo do mundo onde se enrosca a energia pura que anima a evolução do Homem, a força Kundalini que dorme enroscada em espiral na parte inferior do dorso do …
Iniciou a marcha por baixo das águas em direcção ao fogo.
Sentiu um forte cheiro a ácido. Amélia caminhava, plena… Óleo Vitríolo banhava-a em concentração certa: - animada Amélia sentia vivificar resolução de caminhar.
Abaixo dos seus pés abria-se um abismo de fogo… Era enorme aquela gruta! O tecto era de cobre… Fazia-se aquele imenso fogo de paixões. Ardia ali todo o “manu factum”… Amélia sabia que atravessar aquela gruta a podia calcinar, no instinto colocou a mão direita sobre o peito, tentando aquietar-se, ouvir-se…Sentia dentro de si o desejo puro de se mover sobre o abismo. A consciência da queda no furor do ígneo mantinha-a parada… Como queria encontrar dentro de si a Grande Mãe que lhe desse protecção à caminhada…
A chama azul do caduceu extinguia-se… Amélia moveu o pé direito ficando apoiada sobre o esquerdo… o calor imenso que ascendia do abismo fazia ascender dentro de si uma Força que a animava… Ela era capaz! Reunia em si a emanação de toda a energia cósmica… Kundalini! A grande Mãe… Levantou o pé esquerdo… Levitava envolta da Luz branca emitida do seu caduceu.
Caminhava sobre o fogo dirigindo-se à abertura que à sua frente se abria. Viu-se rodeada por luz azul, o tecto era de prata.
O absoluto silêncio envolvia-a e o único som era o do bater do seu coração. No centro da gruta existia um disco de prata em forma de quarto crescente. Um filete de ouro girava fechando a lua. Amélia entrou no círculo de prata, abriu os braços e as pernas e girou juntamente com o circulo… toda a prata se transmutava em ouro…

Amélia sentia irradiar dela o calor de um Sol, o seu Caduceu ganhou asas… Ouetzalcoatl !!!… o mundo das esferas…
A música que compõe o mundo… podia ouvir o somatório harmónico cósmico…
Todo o ruído passava por ela, sons dissonantes mesclavam-se com o seu vasto mar interior… Deixara de lhes resistir.

Largado o corpo no fundo do círculo, caminhava dentro do seu ouvido interior. Iniciou a subir a escada, os versos da canção da sua vida vibravam harmonicamente, o fim e o início, o verdadeiro que cala a inquietude, qualquer lugar para que se voltasse emanava o calor da luz derramada por sobre férteis vales verdejantes da vida que fora, a vida que era e da vida que seria, o macro e o micro, o circulo e o ponto, a eternidade e o momento, rememorada no objecto.

Passavam pelo seu espírito objectos, vazios de palavras, abrindo-a à compreensão das dores mais profundas que gotejaram o seu coração, à exortação do mal que a moveu, à inexorabilidade do bem que a animou, matando toda a sede dos sentidos… Tacteava interiormente o seu perfume e paladar em cada novo chio que se calava, inundava-a a sonoridade do insonoro... a paciência e a persistência faziam-na ganhar a mais elevada aspiração; - subir a escada dos anjos. Estar em harmonia com o que é!

quarta-feira, 24 de março de 2010

impressionante



Recebi por email o link

domingo, 21 de março de 2010

Porque hoje é um dia de poesia

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos



sexta-feira, 19 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

sem titulo director

e de repente...
caí do paraíso
nada fiquei
nem flor
nem pedra
nem pássaro
nem cheiro
talvez o vento
me sopre
os cacos

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Nocturno

A noite encosta-se a mim
Mas eu não me encosto à noite
De mim a noite deseja a Treva
Mas a Treva não me deseja a mim
E eu… Eu pisco-lhe o olhar
Entre cada lampejo do que
Não se apaga em mim.


Ensinaram a noite a fazer-se temer
Pela maldição de um negrume
Que não me ensinaram a mim
Enxofre roubado a nebulosa
Faz luminosa a noite
E eu… eu pisco-lhe o desejo...
Deixo que se entregue, intimamente,
Ao Azul que o negro não esconde


Trinco a lua e degusto o breu
Que lhe cai do inóspito batido em claras
Pelo fim do sentir… castelos de sonhos
Que a fantasia encima de pó das estrelas
Acendendo na noite; - outra face
Do mesmo breu.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010





Olhei o vento soprar
Caminho de rio se fazer mar
Fiz-me saia e vesti-me de mim
Pendurei-me nos brincos de abanar caminhos
E passeei pelos meus medos como quem confia
No lado a lado de dois caminhos
Deixei que os passos me abrissem os lábios
A um segredo trazido por outras brisas
O ar de mim vibrou nas cordas de fazer voz
E nem sequer se mostrou terrível o vendaval que de mim saía
O monstruoso que vagava nos meus medos
Ficou na foz do Tejo
Sereno contentamento
De um beijo quente num entardecer
Passeado, lado a lado,
Com a bonomia

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Autofagia





Meu alimento é a cólera,
Ceio a mim mesma
E, assim morro de fome,
De tanto me fartar
in: Coriolano - cena 2 acto 4 - William Shakespeare
Fui âncora da tua esperança
Hoje sou apenas o meu caminho
Uma estrada sem sinais e sem regresso

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Paisagem de solidão

Espreguiçar o dia nas gotas da janela por abrir
O som incessante da cidade em fundo
Ocultando o sol radioso e quente de manhãs por desembrulhar

Escancaro a janela e o mar mostra-se revolto
Espancando as areias nauseadas pela força da tempestade
Que teima em ribombar no céu negro do alto mar

Um grito de gaivota esfaimada irrompe pelo labirinto
É conduzido ao centro sem qualquer encruzilhada
O bradar de um silêncio ofendido pela lascívia que se derrama em presente

O bote da esperança naufraga na praia das ausências
Mastro partido e velas rasgadas pelos ventos da loucura
Que a solidão levantou numa oferta gravada em segunda mão

O som do silêncio impregna o avesso da alma, a limão e a verde,
No postar de mãos em imprecação pelos não amados
E a janela fecha-se certeza de que nem nada lhes será ofertado

Cuspo o negro do céu por entre o espreguiçar de um dia
Chovo as janelas fechadas ao redesenhar da paisagem
Diluvio o prego na parede que pendura a voz das sedas

Silencío a indignidade e pinto estrelas azuis em pétalas de violetas

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Estejamos vivos, então!

Morre lentamente quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem destrói o seu amor-próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
Repetindo todos os dias o mesmo trajecto,
Quem não muda as marcas no supermercado,
não arrisca vestir uma cor nova,
não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
Quem prefere O "preto no branco"
E os "pontos nos is" a um turbilhão de emoções indomáveis,
Justamente as que resgatam brilho nos olhos,
Sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
Quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,
Quem não se permite,
Uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da
Chuva incessante,
Desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,
não perguntando sobre um assunto que desconhece
E não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
Recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior do que o
Simples acto de respirar.
Estejamos vivos, então!

Pablo Neruda

sábado, 2 de janeiro de 2010


Escrever, para mim, é congelar o tempo. Guardar um momento, uma ideia fugidia ou uma qualquer teoria rabiscada pelo vento que sopra no meu sótão. A maior parte das vezes escrever é para mim fotografar os sentimentos: - Um paixão, uma frustração, o doce mel do amor bailando o peito ou o registo de um ruído difuso e inconfesso a que o símbolo dá forma e exprime. Outras vezes a escrita liofiliza-me as lágrimas que ficaram anónimas aos olhos.

Não procuro razão na força das palavras, procuro a consciência, por entre o garatujar puramente simbólico, do que me passeia anónimo pela mente, esse lugar da volatilização dos sentimentos, materializando na palavra as correntes químicas emanadas do pensamento.

Pensei fazer um blog anónimo. Pensei no que escreveria a anonimia? Concluí que não escreveria nada que a falta de anonimato não escrevesse. O que escrevo mais não é que pedaços de tempo congelado… Fotografias de sentimentos.