quinta-feira, 24 de maio de 2012

Construir a Realidade

Acorda a manhã e com ela a incerteza lança os seus primeiros raios. Os dedos róseos da aurora estendem-se por entre o negro noturno apagando o céu e lançando luz sobre a realidade de um dia novo;- metade construída e metade por realizar. 

Olho as janelas de luz já acesas; - partilho com a mulher que assoma à janela, mal desponta o dia para estender a roupa, o sentimento que em mim encerro; - a incerteza. De que realidades se fazem os dias desta mulher debruçada sobre a janela do seu lar? Uma família; pai, mãe e filho funcionais em seus papeis sociais? Uma família monoparental desempenhando papel de pai e mãe? Terá um avô ou uma avó a cargo, tendo de encontrar dentro de si a resiliência para lhes dar o carinho e o conforto de que necessitam, pondo de lado as preocupações que a roem por dentro? Estará na sua realidade a preocupação constante de ter comida na despensa e as despesas saldadas no fim do mês, ou pelo contrário vive folgada de bens materiais? Que estatísticas avassaladoras engrossará a realidade que adentra a janela iluminada de onde se pendura a mulher que estende a roupa? – A do estigma do desemprego? A da indignidade da violência doméstica? Viverá silenciosamente a solidão da cidade dependendo exclusivamente da força que em si reúne para vencer cada dia ou, desvalida, percorre os passeios do intendente para pagar a renda? Poderá esta mulher ver a beleza que a aurora espalha sobre a cidade de Lisboa? Saberá rir? O que lhe abrirá um sorriso franco? Saberá disfrutar do perfume florido em maio de uma rosa num jardim camarário de Lisboa ou ter-se-á esquecido de sentir na azáfama citadina? Terá consciência de si? Qualquer que seja a realidade da mulher debruçada à janela do seu lar tem em comum comigo a incerteza da janela aberta ao futuro de Ser Mulher. A mais ninguém cabe senão às muitas que somos apenas nós as duas construir essa realidade mas saberemos nós, as muitas que somos apenas nós as duas, que realidade de Ser Mulher queremos e podemos construir? A realidade de ser ela e a realidade de ser eu difere tão completamente que parece impossível a construção da realidade comum na qual ser ela e ser eu seja igualmente realizável. 

A tarefa humana mais sublime é o de realizar eticamente o seu rosto. Para se ser humano, não basta a realidade biológica, é necessário ser-se reconhecido como tal. È na relação com o mundo, e necessariamente com o outro, que este reconhecimento se faz. A dignidade é o efeito deste reconhecimento e a sua fundamentação mas como dizia Saramago é mais fácil ao ser humano chegar a Marte de que chegar ao seu semelhante e tem sido mais fácil reconhecer às mulheres o direito à dignidade do que construí-la. 

Cansada da escravidão do seu corpo a mulher fez ouvir, durante todo o século XX, a sua voz pela voz que a sociedade reconhece; - a masculina. Violentou-se na sua maneira de ser e adotou o modo masculino de fazer. Praticou provavelmente o maior crime contra si mesma e contra a sociedade ao fazê-lo mas, foi essa a única forma que encontrou de ver legislados e punidos crimes como: - estupro; - violação; - lenocínio; - lenocínio marital; - pedofilia… Ao fazer pela forma masculina conseguiu renovar as consciências no que refere ao pudor na busca da intimidade, trazendo para o espaço público em primeiro lugar os direitos do corpo feminino, criando bases mais iguais a essa busca absolutamente essencial a Ser; - A busca da intimidade. Foi essa a única forma que encontrou para aceder a um direito que confere por si mesmo dignidade; - Trabalho. Temos muito a agradecer às nossas antecessoras feministas que pela forma masculina construíram a realidade em que nascemos e em que nos desenvolvemos. Sem elas o pouco poder que o masculino partilhou com o feminino, sobretudo o direito ao trabalho, ter-nos-iam sido negados e estaríamos ainda no triângulo - Solidão; - Silêncio – e ignorância que marcou a vivência da mulher até finais do século XIX mas de facto o terno e o tramelo de Marlene Dietrich não parecem servir-me por estes dias. Sempre que o vesti durante o século XX senti-me eu mas por estes dias parece afastar-me dela. Por estes dias o fato aceite como eficiente tem-me conduzido apenas à exaustão e o esgotamento não me vem da falta de força mas da frustração. 

Desde o início dos anos 90 até hoje a realidade foi-se tornando cada vez mais complexa. Realidades longínquas chegam-me de forma tão eficiente que eu tenho que as integrar rapidamente na minha realidade quantas vezes paradoxal. Ao mesmo tempo que os meus recursos para mapear a realidade foram escasseando a sociedade foi-se tornando cada vez mais intolerante ao erro. Enquanto mulher para ser reconhecida como Ser cultural estou obrigada a ser eficaz e eficiente enquanto trabalhadora, fémea, transmissora, formadora, cuidadora. 

A adoção do modelo masculino de fazer trouxe consigo a normalização de ser eficiente e eficaz masculino à totalidade de ser mulher e esta normalização é desumana e fere a dignidade feminina. É impossível a uma mulher, nos modelos atuais de carreira no mundo do trabalho e com os apoios sociais existentes, construir-se nas múltiplas facetas de ser mulher. A mulher vê-se diariamente confrontada com a escolha da defesa do seu posto de trabalho em detrimento do seu papel procriador, formador e cuidador. Uma carreira, quer de homem quer de uma mulher, constrói-se em períodos de 10 anos: - entre os 25 e os 35 anos constroem o seu lugar nas empresas; - dos35 aos 45 anos atingem o pleno do seu desenvolvimento intelectual e produtivo; - dos 45 aos 55 anos fazem as organizações aprender; - dos 55 aos 65 anos iniciam a sua luta com os recursos humanos para não serem substituídos por jovens com melhores capacidades físicas e no ascendente das capacidades intelectuais. Esta é a dura realidade do mundo do trabalho para homens e para mulheres mas no caso feminino acresce que a partir dos 35 anos a maternidade pode estar comprometida e mesmo tendo a ciência minorado os riscos de ser mãe aos 40 anos a verdade é que entre os 30 e os 35 anos o relógio biológico diz-nos, alto e bom som, que estamos atrasadas. 

Não conseguimos ainda uma estrutura social que substitua a família. A escola foi a grande aposta mas mostrou não ser capaz de educar pelo amor como o faz de forma tão eficiente a família. Os lares de idosos foram outra aposta para resolver a questão de ascendentes a cargo mas mostraram ser pobres em afeto. Mais do que conseguir produzir uma estrutura social que substitua a família pergunto: - queremos essa estrutura? Queremos uma sociedade em que a procriação independa da filiação? Queremos procriar sem cuidar, sem educar, sem transmitir? A primeira vez que me detive sobre este pensamento foi na legislação do casamento homossexual em Portugal e por que é um raciocínio absolutamente linear quero partilhar. 

Até à legalização do casamento homossexual a filiação dissociada da reprodução, trazida ao espaço público para discussão ética, teve na sua génese o colmatar da incompetência biológica, salvo raras exceções de generosidade que confirmam a regra, de casais do modelo dos “dois sexos” de família, em que os modelos de pai e de mãe ficaram intocados. O casamento homossexual arrasta consigo a homoparentalidade. É inevitável. O casamento é mais do que um contrato, é um projeto de vida em que a filiação tem papel principal e a homoparentalidade dissocia completamente reprodução da filiação. Dissociar a imagem da mulher do conceito de mãe e a imagem do homem do conceito de pai, típicos do “modelo” de ‘dois sexos’ da parentalidade, das atividades sociais e dos sentimentos acrescenta socialmente? Sem dúvida a mulher pode liberta-se do papel cuidador e o homem pode libertar-se do papel provedor e cada um pode desenvolver livremente o papel que melhor o faz acrescentar, enquanto síntese própria, socialmente mas teremos estrutura mental e social que suporte a dissociação em definitivo da reprodução da filiação? 

Quando nos reproduzimos estamos antes de mais a responder a uma necessidade básica; - manter a espécie. Este desígnio coletivo foi remetido pela natureza à esfera privada e há uma realidade de que não nos podemos alhear; - uma mulher está biologicamente preparada para parir (ser mãe) e um homem biologicamente preparado para fertilizar (ser pai). Esta realidade não é social é biológica e imutável na forma natural. 

Sempre seremos uma sociedade construída por homens e mulheres; - é imutável. Pergunto: - É possível uma cultura onde a diferença de género esteja ausente? Acho que não. Um homem não pode ser entendido como uma mulher nem uma mulher pode ser entendida como um homem e não podendo ser entendidos de maneira igual não podem ser tratados igualmente mas a dignidade de um homem é entendida como a dignidade de uma mulher e a dignidade de uma mulher é entendida como a dignidade de um homem e sendo a dignidade de um homem e de uma mulher entendidos como iguais então são iguais. A construção da realidade de Ser mulher difere da construção da realidade de Ser homem mas a construção da realidade da Ser digno não pode diferir. 

Este é o desafio que nos coloca o século XXI. Fazer evoluir as mentalidades, a das mulheres incluída, no sentido de a sociedade respeitar a dignidade da mulher defendendo o seu direito à inclusão no fator que por si mesmo confere dignidade; - Trabalho – mas respeitando seu ritmo biológico e integrando o homem na sua missão de formadora e cuidadora. 

A sociedade mutifocal construiu muitos rostos éticos e a abordagem às questões da dignidade tem-se feito apenas pela negação da banalidade. O confronto com a indignidade e a falta de respeito dá-nos indícios dos comportamentos que exigem respeito mas a dignidade atual da mulher exige mais do que o confronto com comportamentos banais, exige a construção de novos comportamentos e atitudes quer ao nível privado quer legislativo ou social. Deverá sobretudo ser feita a discussão ao nível laboral. O mundo do trabalho e a família têm momentos incompatíveis e as organizações precisam de deixar de considerar um estigma lacunas curriculares. A manutenção da família pode precisar de uma pausa laboral da mãe ou do pai, do filho ou da filha com ascendente a cargo mas para que tal seja possível o mundo do trabalho tem que evoluir no sentido de aliviar o estigma sobre essa escolha individual. quando tal acontecer as famílias saberão dosear o recuo feminino e o recuo masculino no sentido de viabilizar a família e ambas as carreiras.

Acreditamos, a uma que sou eu e ela, que os dedos róseos da aurora se estejam a estender por entre o negro e lançarão luz sobre a realidade de um dia novo;- metade construída e metade por realizar.

2 comentários:

Francisco Clamote disse...

Uma reflexão profunda, sem dúvida. E, na forma, poética. Partilho algumas das inquietações que aqui transparecem mas não sei se seremos capazes de as resolver. No nosso tempo que é curto. No entanto, reflectir sobre elas é não só salutar, como indispensável. Saudações cordiais

Anabela disse...

Viva Clamote

Grata pelo incentivo.

Este texto não é uma reflexão é um pedido de socorrooooooo!

Preciso de as resolver comigo nesta minha curtíssima viagem sob pena de não me conseguir cumprir.

Os acontecimentos correm tão velozes à nossa frente que acelerou o tempo. o tempo de uma vida sempre foi curto mas este início de século faz do tempo de uma vida um brevíssimo sopro.

Acredito que temos que encontrar soluções muito em breve sob pena de andarmos todos à "trolha" :)