sábado, 8 de maio de 2010

o micro e o macro

“Não existia nada: nem o claro céu,
Nem ao alto a imensa abóbada celeste.
O que tudo encerrava, tudo abrigava,
E tudo encobria, que era? Era das águas
O abismo insondável? Não existia a morte,
Mas nada havia imortal. E a separação
Também não existia entre a noite e o dia.
Só o Uno respirava em si mesmo e sem ar:
Não existia nada, senão Ele. E ali
Reinavam as trevas, tudo se escondia
Na escuridão profunda: oceano sem luz.
O germe, que dormitava em seu casulo,
Desperta ao influxo do ardente calor
E faz então brotar a Natureza Una”
in: RigVeda


Como inteligir o existir e o inexistir em simultâneo? Como inteligir um sentido respirando em si mesmo, sem luz, latente em seu casulo? Como inteligir um casulo de treva germinal? Não é da Luz Divina e Criadora que brota a natureza manifestada mas de uma profunda treva em que se esconde. Um ser e um sentido absoluto são ininteligíveis no mundo relativo da razão solar. Convido-te à Luz Lunar. Convido-te ao maravilhoso, à imaginação, ao sonho, para buscar o sentido do imanifesto na natureza manifesta. É isso que aqui fazemos, não é?

Tudo para se manifestar necessita de um veículo. É necessário que o imanifesto impregne a plasticidade para que se exprima. Como expressar o Espírito sem Matéria? É necessária uma forma, não é? Não há no Universo o puro espírito sem matéria. Estes dois pólos: - O espiritual ou o imaterial ou a consciência e - a substância ou o material ou a receptiva plasticidade que lhe serve de veículo existem no seio do absoluto; - existe no seio do absoluto a consciência e o véu que a encobre, esse mesmo véu que lhe serve de veículo para manifestação individual do absoluto escondido na escuridão profunda da treva, respirando em si mesmo e sem ar.



Deixemos que o tempo se dobre sobre si mesmo e permitamo-nos voltar ao mais puro estado do Caos. Nem morte nem imortalidade, nem noite nem dia, apenas treva impregnando o quadrado da natureza, latente em seu casulo aguardando o despertar.

É agora que vos peço para que deixem manifestar, no mais fundo da vossa treva, a ténue Luz Lunar, deixem que desperte, ao influxo do seu calor, a Natureza Una em vós. Deixem-se volatilizar como se fossem apenas odores aquecidos vagando o espaço, deixem que se erga do Fogo do Meio-Dia ao Setentrião o véu da materialidade. O abismo profundo das águas separa-se deixando que a montanha se manifeste, Feminino e Masculino, impregnando dos seus odores diferenciados, o Uno Rectângulo de Ouro.

Dêem ao vosso olhar altura e deixem que a abóbada celeste respire resplandecente com seus luzeiros de fazer o Dia e de fazer a Noite, deixem que a mais profunda Treva em vós vá cedendo, lentamente, lugar à manifestação da Luz, conheçam de igual modo o velho e novo, o amor e o ódio, a vingança e o perdão, o individualismo e a fraternidade, a morte e a vida, a matéria e a espiritualidade. Deixem que essa dualidade, bem conhecida, opere na vossa Natureza Terra, diferenciada da impregnação do quadrado.

Dai agora ao vosso olhar comprimento, e contemplai a Beleza do Universo, o Macrocosmos manifestado Luz da vossa mais profunda Treva, dando igual lugar: - ao novo e ao velho; - ao quente e ao frio; - ao compreendido e ao incompreendido; - ao próximo e ao longínquo; - à Luz e à Ausência em que se mostre.

A Ténue Luz Lunar desdobra-nos o velho Mito para se fazer novo em outro lugar do tempo. Qual o tempo? Qual o Lugar? Não sei… O que eu sei é que no centro; - o germe, desperta do seu casulo de Treva pelo influxo ardente da razão e do sonho, para brotar enfim a natureza única em cada Um; - nem Centro nem Esfera, nem Sol nem Lua, nem Feminino nem Masculino, nem Luz nem Obscuridade, nem Bem nem Mal, apenas o Véu da Consciência que um Tempo paciente nos há-de revelar.

Escada de Jacob

O trânsito estava caótico: - A Serra! Claro! - Ainda estava a tempo de sair da A4 e fazer o caminho da Serra de Valongo – Amélia virou à direita e meteu-se pela Serra.
Logo depois da curva parou. Sorriu: - igual. Não havia alternativa senão esperar, gastar um pouco mais de gasóleo; - soltou uma gargalhada: - Já que a crise do petróleo tinha estalado melhor dar uma ajudinha…
Amélia encostou o carro à berma. Podia aproveitar o fim de tarde num passeio pelas matas.
O contacto com a natureza deixava-a sempre serena. Ver o sol pelas folhas, ouvir o cantar da natureza… Deixar a Natureza fluir pelas narinas, pelos ouvidos, sentir-lhe o gosto era estar com a Ordem por trás do Caos.
À medida que se embrenhava na mata o ouro solar prateava-se e invadia-a a sensualidade da ausência do ruído citadino… Reflexos de luz chamaram a sua atenção… vinham do chão,
Amélia baixou-se para ver o que reflectia o sol. Viu, por entre a vegetação, um círculo de metal que não teria mais de 40 cm de diâmetro. Bateu… Soava a oco… Esgravatou com as unhas a terra e colocou a descoberto uma das bordas do circulo… hesitou… melhor seria dar meia volta e voltar ao carro: - Raios e coriscos! Havia alturas em que odiava ser mulher… puxou com força a borda do círculo e descobriu o que parecia ser uma entrada para uma gruta. Saltou! No salto largou a vegetação que a mão afastava e a entrada ficou tapada.
Voltou ao carro e deitou a mão à porta na firme determinação de dar a volta à chave e voltar para o calor do lar. Entrou resoluta no carro, meteu a mão no porta-luvas e tirou a lanterna. Dirigiu-se à entrada circular.
A entrada era estreita… ia ser duro. Acendeu a lanterna, deitou-se no chão e esticou os braços para dentro do buraco. Era terra, só terra. Começou a rastejar até estar toda dentro. O buraco estreitava-se e Amélia começou a sentir a boca a saber a metal. A lanterna incomodava, não a deixava rastejar como devia. Colocou a lanterna na boca e fez mais força com os braços e com os pés. O buraco era estreito… à medida que adentrava vinha-lhe às narinas o cheiro quente da terra. Estranho… deveria estar em pânico… continuou a rastejar e sentiu que a entrada se alargava na zona das mãos: -Mais um pouco Amélia, mais um pouco.
Deixara de sentir paredes nas mãos, a lanterna mostrava que o buraco estava a acabar. Doíam-lhe as ancas de roçar a terra… Persiste Amélia! Persiste!
Chegou finalmente à gruta. Era baixa mas magnifica... O vermelho do sulfureto de mercúrio fazia-lhe lembrar o Útero. Amélia deitou-se sob a terra para descansar da ansiedade da entrada: -aquela cor era absolutamente única, brilhante… Sal de Mercúrio e Enxofre em estado puro… doseados no certo… bem conservados…
A lanterna começou a falhar. O coração de Amélia deu um salto. Esta não era, de todo, a melhor altura para a tecnologia lhe falhar. Bater no equipamento costumava resultar nos filmes; -bateu… nada! O absoluto breu envolveu-a… pelo meio de um esgar Amélia pensou que aquele instante, definitivamente, não era o de um filme do McGiver.
O coração de Amélia batia-lhe na garganta, na boca a secura gastara toda a saliva e no estômago voavam mil borboletas. Amélia concentrou-se na Terra. Tacteou-a como se tacteia um amante, tentando sentir-lhe as formas, as irregularidades… tactear o calor da terra acalmava-a. Tinha-se deslumbrado com o vermelho e esquecera-se de registar, no seu decúbito, a posição relativa da entrada… Amélia assumiu os restantes 4 sentidos e o coração voltou ao peito.
Deixara a entrada aberta, se houvesse uma saída por certo haveria ar corrente. Amélia levantou o braço… sim! Podia sentir pelo meio do braço, do lado esquerdo, ar. Teria que se movimentar para a esquerda. Deu sobre si uma volta, levantou a cabeça e pode ouvir o assobiar do ar, seguiu o som, abeirou-se do calor da terra, como se rastejasse o ventre.
A mão tocou um objecto. Amélia sentou-se e tacteou-o. Parecia um bordão. A ladear o bordão havia algo que parecia serpentear, a encimar o bordão havia um fino globo. Amélia sentiu nos dedos tacteantes; -pó. Levou a mão ao nariz… enxofre! - O isqueiro Amélia! Nunca sabia onde colocava o isqueiro, era até motivo de graça dos colegas essa sua idiossincrasia com o isqueiro: - Como gostava de ter um isqueiro no bolso: - Amélia! Não há melhor sitio para ter um isqueiro que no bolso mulher! - Tremiam-lhe as mãos - porque nunca sabes onde pões o isqueiro!... Bom… dióxido de enxofre também não era boa ideia, as narinas agradecer-lhe-iam não saber onde tinha o isqueiro.
Voltou a concentrar-se no som, que se tornara mais presente, agarrou o bordão e usou-o para sondar a marcha. Avançou.
Chegava-lhe som de água que caía. Formou-se na sua mente a imagem de parede de água caindo em lago. Amélia viu-se, pelo lado fecundo, banhada… Viviana; - A Dama de Lago… uma virgo amante de Merlin, encerrada em si mesma… Um símbolo brilhando sob luz de prata, possibilidade perene de renovação, de juventude e de liberdade sexual. Amélia sentia-se imergir em segurança, soçobrando segredos de vida e morte, alimentando ciclos, forjando espadas tomadoras de Graal…
Ah o frescor da água que sobre si caía lavava-a de toda a angustia, envolvia-a a segurança de ser liquido, sem forma, tolerante a qualquer espaço… Livre!
Amélia iniciou a atravessar as águas, segurou o bordão pelas serpentes, pareciam mexer-se… pareciam tornar-se vivas: -Sempre odiara cobras, Não! cobras não! Alargou o espaço do indicador ao médio, come se fosse largar o bordão…

Irrompeu do globo uma chama azul… O forte cheiro a queima de enxofre rompeu o espaço… Amélia podia ver, por trás da espessa parede de água, fogo… Hesitou! Prosseguir? Voltar? Por certo não se aguentaria na gruta cinábrio com o enxofre em queima.
Olhou o Caduceu… Era a vida fatídica ?Poderia ela dirigir livremente a sua vida?
Poderia ela reunir num mesmo plano res cogitas e res extensa . Amélia olhava a mente como o potencial estático do activo, criativo e mutável espírito, olhava o corpo como o potencial dinâmico da mente.: -Talvez Descartes tivesse razão e não fosse possível a dois princípios, a duas substâncias ou duas realidades serem redutíveis entre si, conciliáveis, capazes de síntese final ou de recíproca subordinação mas Amélia recusava-se a colocar a hipótese de não haver factor comum no limite das diferenças Dx e Dy… Teria de haver factor comum à derivada e ao integral… O fatalismo mais não era do que falta de acção…
Amélia sorriu… A sua língua não possuía a flexão gramatical de número dual . Em português ou era um ou eram muitos. Abriu-se mais o sorriso… Só uma palavra poderia carregar essa ideia, talvez a excepção que confirmava a regra; - ambos…
Duas serpentes acasaladas sobre o falo erecto de Hermes, símbolo de fecundidade…
Eixo do mundo onde se enrosca a energia pura que anima a evolução do Homem, a força Kundalini que dorme enroscada em espiral na parte inferior do dorso do …
Iniciou a marcha por baixo das águas em direcção ao fogo.
Sentiu um forte cheiro a ácido. Amélia caminhava, plena… Óleo Vitríolo banhava-a em concentração certa: - animada Amélia sentia vivificar resolução de caminhar.
Abaixo dos seus pés abria-se um abismo de fogo… Era enorme aquela gruta! O tecto era de cobre… Fazia-se aquele imenso fogo de paixões. Ardia ali todo o “manu factum”… Amélia sabia que atravessar aquela gruta a podia calcinar, no instinto colocou a mão direita sobre o peito, tentando aquietar-se, ouvir-se…Sentia dentro de si o desejo puro de se mover sobre o abismo. A consciência da queda no furor do ígneo mantinha-a parada… Como queria encontrar dentro de si a Grande Mãe que lhe desse protecção à caminhada…
A chama azul do caduceu extinguia-se… Amélia moveu o pé direito ficando apoiada sobre o esquerdo… o calor imenso que ascendia do abismo fazia ascender dentro de si uma Força que a animava… Ela era capaz! Reunia em si a emanação de toda a energia cósmica… Kundalini! A grande Mãe… Levantou o pé esquerdo… Levitava envolta da Luz branca emitida do seu caduceu.
Caminhava sobre o fogo dirigindo-se à abertura que à sua frente se abria. Viu-se rodeada por luz azul, o tecto era de prata.
O absoluto silêncio envolvia-a e o único som era o do bater do seu coração. No centro da gruta existia um disco de prata em forma de quarto crescente. Um filete de ouro girava fechando a lua. Amélia entrou no círculo de prata, abriu os braços e as pernas e girou juntamente com o circulo… toda a prata se transmutava em ouro…

Amélia sentia irradiar dela o calor de um Sol, o seu Caduceu ganhou asas… Ouetzalcoatl !!!… o mundo das esferas…
A música que compõe o mundo… podia ouvir o somatório harmónico cósmico…
Todo o ruído passava por ela, sons dissonantes mesclavam-se com o seu vasto mar interior… Deixara de lhes resistir.

Largado o corpo no fundo do círculo, caminhava dentro do seu ouvido interior. Iniciou a subir a escada, os versos da canção da sua vida vibravam harmonicamente, o fim e o início, o verdadeiro que cala a inquietude, qualquer lugar para que se voltasse emanava o calor da luz derramada por sobre férteis vales verdejantes da vida que fora, a vida que era e da vida que seria, o macro e o micro, o circulo e o ponto, a eternidade e o momento, rememorada no objecto.

Passavam pelo seu espírito objectos, vazios de palavras, abrindo-a à compreensão das dores mais profundas que gotejaram o seu coração, à exortação do mal que a moveu, à inexorabilidade do bem que a animou, matando toda a sede dos sentidos… Tacteava interiormente o seu perfume e paladar em cada novo chio que se calava, inundava-a a sonoridade do insonoro... a paciência e a persistência faziam-na ganhar a mais elevada aspiração; - subir a escada dos anjos. Estar em harmonia com o que é!