Iniciara-se leve a manhã e Amélia caminhava o carreiro que a levaria à fraga bem no topo da montanha. O granito paria urzes e da lenha vinha o verde que pintava o branco. Rara era a água e a que havia gelara nas frestas. Da boca de Amélia saía vapor arquejante feito pela subida e pelo sorriso.
O sol mal tinha despontado quando Amélia se levantara… um camisolão, calças, botas e na mochila o farnel para o dia; água, pão e fruta, ah! O canivete do Matias, por certo lhe perdoaria, era só um empréstimo por um dia. O ponta e mola do Matias… o frio do metal provocara-lhe sempre arrepios e quando a mola soltava a lâmina, Amélia saltava... Repetiu o gesto e sorriu no salto. Correu para a fonte e lavou a cara na gélida água que escorria. Pôs-se a caminho, eram bem duas horas, se estugasse o passo eram duas horas… Duas horas e estaria na fraga.
A fraga era uma espécie de mito. A montanha era penedia mas a fraga encimava a montanha e exercia sobre a paisagem toda a sua magia. Amélia aprendera ali que a perninha extra do Y se aprende, não se nasce mulher! Nasce-se… depois diferencia-se. Ela sabia que a perninha extra de um Y trazia inclusa romã e degustar romã era paciente trabalho de separação de partes “asignáveis ”, aturado trabalho de libertação de dualidades culturalmente imposta por conceitos, na maior parte das vezes por preconceitos.
Amélia não podia imaginar a montanha, excisada da fraga. A montanha sem fraga perderia o poder de excitação do imaginário. Porque era disso que se tratava, do imaginário das rosas que o tempo quis excisar, física ou culturalmente; - É verdade: o género e a cultura excisaram o feminino
Ah Senhora da Lua!
Grande Espírito se revela
Usando o vazio de teu vaso
Poder de sangramento
Que não mata e vivifica
Acervo de segredos
Semente de trigo plantada
Espiga madura Senhora da vida
Estio de toda a abundância
Deusa de 10 lunações
Unificando círculo em seu ventre
Perpétuo renascimento
Esperança de Sabedoria
Guardando Sombras
Conduzindo almas…
Usou a sociedade Judaico/Cristã, como ponta e mola para excisar o feminino, o Rosarium: - expiação de toda a culpa, fabricada no imaginário dos homens, de que o sexo das mulheres é impuro e diabólico… como se um minúsculo pénis pudesse fazer sombra à virilidade masculina …
Substituíram A Deusa pelo andrógino Espírito Santo. Pai, Filho e Espírito Santo; -Já está! O Feminino desapareceu da Tríada Sagrada; - O feminino passou a intermediário do Divino na sociedade Patriarcal.
Se ela é Senhora da Vida ele é Senhor da semente. Ela o ventre ele o falo erecto. Ela o vazio, ele a matéria que a faz vaso. Parceiros na dança cósmica, recreação de universo presente, sem predomínio ou competição.
Acolher a Deusa em nós é acolher o natural. Fogo, Água, Terra e Ar unidos pela Quintessência; - O Espírito, dando relevo aos valores femininos: - O reconhecimento do valor da vida; O exercício da solidariedade; O poder da conciliação; O respeito pela Terra.
Amélia chegara à fraga. Ufa… Intacta!
Olhou o relógio e sorriu: -duas horas certas, durara a caminhada. Sentou-se, tirou o pão e o ponta e mola do Matias. Abriu-o, no soltar da mola só saltou o sorriso. Amélia sabia que era co-autora nesta história.
Olhou o monte enquanto cortava o pão, trigo colhido no monte, amanhado na eira e amassado no ventre… Esta imagem do sermão de Nossa Senhora do Rosário, era a mais bela imagem que alguma vez se materializara na sua mente. Trigo! Alimento do corpo e do Espírito. Se o Feminino era o Espírito, o Masculino era o Corpo. Feminino digerindo Masculino. Também ela que trazia dentro de si a Deusa, esse enorme X que unia a humanidade, tinha acoplado à perninha do seu Y o imaginário masculino; - A Força; A Acção; O Trabalho que lhe permitira aprender a ser Mulher Livre.
Eram 9 horas, agarrou uma maçã e deitou-se para acolher em si o Sol, Amélia não tinha qualquer dúvida, a humanidade era filha da Lua, Luz que se intui pelo matiz da Sombra. Acolher a Lua não era rejeitar o Sol… A Expressão das polaridades permitem ao Uno, manifestar-se; o mistério da identidade, a união de Adão e Eva; - Feminino e Masculino duas faces do Todo, expressão de divisão primeira.
Ao Morder a maçã foi-lhe a memória trespassada pela Confissão de Cintio Vitier…
“Bem que eu não saiba história, ou muito pouca, sou
o autor destas páginas.
Tudo me aconteceu desde o princípio.
Sou o protagonista,
a vitima, o culpado e o carrasco.
Sou o que olha e o que actua.
As idades descansaram em mim.
Os dias foram o meu alimento.
As ideias, minhas asas,
meus punhais.
Pelo vazio de minhas mãos passou
o rio das armas.
Meu canto é o silêncio.
Homem, mulher, criança, ancião,
cada gesto meu treme nas estrelas
atravessando o tempo irrepetível
Eu sou. Não busquem outro,
não torturem outro,
não amem outro.
Não tenho maneira de escapar.”
A água degelara das frestas. Ouvia-se o cantar da montanha...
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