quinta-feira, 1 de março de 2012

Caminhando a sul


Caminhava para sul montada nas minhas botas cardadas, apoiada num cajado e aquecida pela estepe lanífera. Às costas a mochila pesava de víveres que o coração limpo aligeirava.
A cortina de bruma dissipava-se abrindo ao olhar a cena. Montanhas de fogo, falos silenciosos e inóspitos, erguidos como último obstáculo ao horizonte. Espetáculo de luz e sombra para contemplação dos que amam. O céu muito azul esmaga a terra e o horizonte percecionado tão perto…
Trazer para a realidade o horizonte, um sonho tão humano e tão à mão do caminhar na paisagem do sul.
O sopé da montanha esfumava calor por uma velha chaminé. À porta uma mulher fiava. O manelo colorido, preso por couro ao roquil, transforma-se, às habilidosas mãos da velha fiandeira, num fino fio multicolor que o fuso freneticamente enrola.
- Bom dia
- Bom dia – respondeu-me a velha senhora elevando o olhar para o meu
- Sou Amélia, uma viajante no sul
Como só o silêncio me respondeu atirei
- Que fia?
- Depende. Agora fio Amélia.
- Fia-me a mim?
- Sim. Quando chegou disse: - Sou Amélia uma viajante a Sul – Um sonho que o manelo atraiu para ser fiado. Amélia significa para si um reportório de comportamentos físicos e morais, para a roca não significa nada. Ser viajante a sul é para si um reportório de sentimentos, para a roca os sentimentos de Amélia não são nada. Nem ser Amélia nem ser viajante a sul fazem parte da realidade da roca. Amélia viajante a sul é um sonho seu e um sonho sonhado sozinho não é mais do que isso; - um sonho – que o manelo atraiu e que eu agora fio na tentativa de juntar as suas cores ao fuso.
Amélia mordeu o sorriso
- Bem… Amélia foi o nome que me deram e em bom rigor eu não sabendo quem é Amélia me vou entendendo comigo nesta viagem pelo sul. De facto este meu entendimento releva à realidade como a entendo.
- Outro sonho – tornou a senhora – A pretensão de que o que lhe acontece agora acontece ao mundo é o sonho mais sonhado. O mundo acontece a todo o instante e estão portanto a acontecer uma infinidade de coisas. Não lhe sendo possível conhecer a plenitude do real não lhe resta outra alternativa senão construir uma realidade arbitrária. Supor que todos são Amélia e que Amélia é todos. Isto proporciona-lhe um tecido de conceitos e com ele olha a efetiva realidade, sem perceber que esse entretecido criado por si é ilusório. Compreende como lhe acontece e não como acontece.
- O que faz com o fio dos meus sonhos?
- Não faço fio dos seus sonhos. Um sonho sozinho nada faz.
- Por que fia então o manelo?
- No manelo não estão os seus sonhos.
- O que está no manelo?
- O sonho coletivo. Só o que o coletivo sonha se torna real. O fio é real e é uno, não é sonho fragmentado. Teço a realidade. Um fio forte e vital que diante de uma e outra coisa seja todos e ninguém em particular.
- Mas isso é sonho!
- Não é o Sol o sonho coletivo do fogo? Não é o mar o sonho coletivo da água? Não é o vento o sonho coletivo do ar. Não é a floresta o sonho coletivo das árvores? Não é a inflorescência em capítulo o sonho coletivo das flores? Não é isto real?
- Sim é. Mas o fio humano forte e vital que diante de uma e outra coisa seja todos e ninguém em particular é sonho. Veja como o mundo se faz; - do particular, não do todo! A promoção do particular para a ribalta do ter para poder fazer. O mundo faz-se da divisão e não da soma. Quem divide tem poder e divide como quer.
- O mundo faz-se do todo, não do particular Amélia. O que se tem construído do particular é o Homem e o Homem já não está com o mundo. O Homem foi-se afastando do mundo, construindo a sua realidade particular, foi desaprendendo o coletivo e quanto mais se afastou do coletivo mais se embrenhou na escravidão do eu. Fez-se escravo de sonhos fragmentados que globalizou e um sonho por mais global que seja não é um sonho coletivo. Não fio esse sonho.
Tal como as aves migram indiferentes às fronteiras politicas impostas pelo Homem, o sonho coletivo do Homem é o da liberdade. Sem igualdade o sonho da liberdade é um sonho sozinho e infiável como forte e vital que diante de uma e outra coisa seja de todos e de ninguém em particular. Tal como a alcateia se junta para promover a sobrevivência o sonho coletivo do homem é o da proteção. Sem igualdade o sonho da proteção é infiável como forte e vital que diante de uma e outra coisa seja de todos e de ninguém em particular. Então a igualdade é o sonho fiável como forte e vital que diante de uma e outra coisa seja todos e ninguém em particular Porque é um sonho coletivo é real.
- Fiandeira, como é que a igualdade é real? A humanidade nunca esteve tão fraturada nas suas diferenças de acesso à riqueza, ao conforto, à segurança, à cultura, à informação. Nunca tanto foi de tão poucos. Nunca tantos tiveram tão pouco. A sociedade global está a matar o remédio social; - a equidade. Sem equidade o caminho para a igualdade é impraticável. Um poço sem fundo onde todos cairemos.
- Por acaso a montanha cessa de existir porque a não vês? O que vês no horizonte Amélia?
- A montanha recortada no céu azul
- Se subires à montanha o que verás?
- A descida para o gelo Antártico sob o céu azul
- E a montanha?
- Desapareceu do horizonte
- Deixou de existir?
- Não. Está dentro de mim
- Quem és tu?
- Uma mulher com uma montanha dentro
- O que é a montanha que trazes dentro?
- A minha humanidade
- Que vais fazer com a montanha que trazes dentro?
- A Igualdade
- Porquê?
- Porque é o horizonte, o sonho coletivo, e por isso real ainda que a não veja.

3 comentários:

Francisco Clamote disse...

Poesia e filosofia em prosa. E não só. Parabéns, Anabela

Anabela disse...

Obrigada Clamote

Não acrescentando muito consegue libertar-me desta sensação de esmagamento.

vieira calado disse...

Desejo-lhe um

Excelente Dia Internacional da Mulher!

Saudações poéticas!